Vasto Mundo
A moça chegou do Rio. Logo se vê... tão alvinha! Saiu
daqui miúda, não diferenciava em nada das outras meninas da escola municipal.
Foi o padrinho que a levou. Voltou essa moçona. Veio passar o São João. No meio
das outras moças, na frente da igreja, ela agora diferencia até demais. O
vestido, bonito, mais altura, as unhas compridas e vermelhas, movendo os
braços, dando voltas e requebros enquanto fala. E falava sem parar. As outras,
mais matutas ainda junto dela, são apenas moldura para o quadro. Para os olhos
de Preá, nem moldura. Não existem. Não existe mais a igreja, a praça, a vila,
nada. Só a moça.
Preá... outro nome não tem. Quem poderia dizer era a
velha, mas morreu sem que ninguém se lembrasse de perguntar. Para a maioria do
povo de Farinhada, hoje parece que ele esteve sempre ali, que sempre foi assim,
uma coisa da vila como a igreja, a ponte sobre o riacho, os bancos de cimento
da pracinha. Mas alguém se lembra: chegou um dia com a velha que chamava de
avó, meio cega, meio mouca, meio fraca do juízo. O menino, não se sabe que
idade tinha... alguma coisa entre oito e treze anos. Quem pode saber?
Fraquinho, enfezadinho como todo filho da miséria. Disseram que vinham do Juá.
Qualquer canto da Paraíba tem rua, fazenda, sítio com esse nome. Também,
ninguém perguntou muita coisa: uma velha perto de morrer e um menino vivendo só
de teimoso... Neco Moreno deixou ficar nos restos da casinha de taipa e palha,
no canto do sítio dele, já bem junto do arruado. Preá amassou barro, tapou
buracos, pediu palha daqui e dali, vivia ajeitando o telhado. Continuou sempre
assim, aquele capricho com a casa, alisando as paredes, reparando rachaduras,
até caiação... Preá faz tudo sozinho, sempre fez tudo sozinho.
Preá não sabe que coisa é esta acontecendo dentro dele.
Começou quando bateu com os olhos na moça. Uma queimação dentro do peito, uma
nuvem na vista que esconde tudo que não é a moça, os ouvidos moucos para tudo o
que não seja a voz dela e um sentimento que parece tristeza, mas não é. Pelo
menos não é daquela tristeza de quando a avó morreu nem de quando o cachorro
sumiu. Preá não sabe o que é. Doença também não é, que muitas vezes ele ficou
doente e era coisa diferente. Pode ser o juízo enfraquecendo. O povo já diz que
ele é fraco do juízo, igual à avó. Agora ele está ficando também cego e mouco,
igual à avó. Igual não. É diferente, diferente de tudo o que ele conhece.
A morte da avó mudou pouca coisa na vida de Preá. A
tristeza que lhe deu, de pouco em pouco foi se acabando. De noite, sozinho, a
casinha parecida maior e mais vazia, por uns tempos. No mais, tudo ficou igual,
só que não precisa mais levar a lata de comida para casa. Encosta na porta da
cozinha de qualquer um, recebe o prato com o que vier, come ali mesmo,
“obrigado, dona, até amanhã”. Desde o começo houve uma espécie de contrato, nem
escrito nem falado, entre Preá e o povo de Farinhada. O menino fazia qualquer
serviço que pudesse, para quem pedisse, sem botar preço e nem receber
pagamento. Do outro lado, ninguém lhe negava um caneco de café, um prato de
comida, uma roupa velha ou, quando ficou maiorzinho, uma dose de cana ou uma
carteira de cigarro barato. Bom como ninguém para fazer mandado que tenha
pressa, levar recado urgente, levar pacote, buscar a ferramenta ou o carretel
de linha que falta para terminar um trabalho. Foi crescendo, aprendendo outros
serviços, artes, muita coisa pode-se pedir a ele. O contrato com o povo
continua o mesmo. Preá, fiel, sempre na pracinha ou na rua do meio, ao alcance
de um grito. Quando não tem serviço, encosta-se na parede... espera. Jamais sai
da vila. Sua casinha na ponta da rua é o limite do mundo. No mundo rural de
Farinhada, Preá é urbano, da parca urbanidade da vila.
O dia de Preá, que começa quando a barra do dia raia por
cima da Serra do Pilão, vira de novo noite quando a moça aparece na praça,
manhã alta. É como estar dormindo e sonhando coisa nunca vista, beleza nunca
imaginada. Muitas vezes já não ouve quando gritam por ele, já não vê quando lhe
acenam, já não fica encostado na parede da bodega esperando chamado, perde-se a
caminho dos mandados, engana-se nos recados. Perdeu todos os rumos menos o da
moça. No rumo dela desvia-se de todos os caminhos, vai cada dia mais longe de
tudo, mais perto dela. Já se começa a comentar na vila que Preá não é mais i
mesmo. “Está ficando mais leso, preguiçoso, esse menino...”
A moça lá no banco da praça, debaixo do jambeiro, cercada
pelas outras que querem ser como ela, falando, gesticulando, mostrando-se. Os
rapazes voltam mais cedo do roçado, banham-se, perfumam-se, vestem a roupa do
São João e vão vê-la na esperança de serem vistos. Preá não teve roupa nova no
São João, por fora é o Preá de sempre, por dentro soa a luz da moça. Preá,
mariposa, chega cada dia mais perto do jambeiro, mais perto dela. No princípio
ninguém nem notava o menino ali parado, os olhos presos na moça alva. Ele tem a
invisibilidade das coisas que sempre estiveram presentes. Mas quando dona
Inácia se cansou de chamar por ele, sem resposta, foi que toda gente viu: “Preá
está lá, feito besta, olhando pra moça”. “Eh, Preá, está gostando da carioca?
Olhe só, Leninha, Preá está louco por você. Quer namorar, Preá?” E o coro “Preá
apaixonado! Preá apaixonado!” Ela achou graça, fez sinal: “Vem cá, meu bem,
senta aqui perto de mim”. Ele foi, levado pelo vento, pelo olhar... pelas
pernas não foi, que não as tinha mais, nem braços, nem corpo, só os olhos e o
coração feito zabumba. Não ouviu os gritos, o riso, a mangação. Viu a moça
olhando para ele, rindo para ele, a mão macia no joelho dele. “Se você gosta
mesmo de mim, Preá, vou namorar com você. Só com você e mais ninguém. Mas tem
que fazer uma coisa pra mostrar que gosta mesmo de mim: domingo quero ver você
subir até na ponta da torre da igreja e me jogar um beijo lá de cima”.
Farinhada toda já sabe do amor de Preá e da exigência da
moça. Apostam que ele sobe, que ele não sobe. A torre da igreja é alta e fina
como uma agulha, como as da terra do padre Franz, que a mandou fazer. Dona
Inácia diz que é maldade da moça, diz a Preá que não suba. Mas o povo espera o
domingo com mais interesse do que o clássico jogo de sábado contra o
Itapagi Esporte Clube. “Preá é leso, vai
subir mesmo...” Erlinda está fazendo coxinhas para vender na praça durante o
acontecimento. Disseram que vem um caminhão de gente do sítio Ventania só para
ver.
Preá não viveu quinta, nem sexta, nem sábado. Nada viu,
nada ouviu, nem dormiu, nem acordou. Pairou desencarnado em alguma dimensão
misteriosa. Voltou ao mundo com o badalar do sino. Não vê a praça enchendo-se
de gente, os gritos, assobios e aplausos. Sobe, para cima, mais para cima. Não
sente as palmas das mãos escalavradas, não sente as plantas dos pés em sangue,
não tem medo. Preá é leve, forte, pode tudo, tem asas. Mais, um pouco mais...
lá em cima, a moça, o beijo. Não percebe
que aos poucos a praça silencia, tensa, admirada. Agora, mais um pouco e sua
mão toca a cruz, agarra-se. Preá respira todo o ar do mundo e olha: lá embaixo
o carro preto, a mala, a moça acenando. Só quando o carro que leva a moça
desaparece ao longe, numa nuvem de poeira, é que o olhar de Preá, liberto,
encontra o horizonte. Lá em cima passeia, vaga, vê. E Preá descobre que vasto é
o mundo.
Maria Valéria Rezende,
in 13 DOS MELHORES CONTOS DA LITERATURA BRASILEIRA.
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